Ele foi tachado de mera mistura dos universos de Guerra nas Estrelas, de O Senhor dos Anéis e da lenda do Rei Arthur. Para alguns, é uma colcha de retalhos repleta de citações e de situações dessas obras, porém, Krull é um filme divertido, bem realizado (levando-se em conta o orçamento e as dificuldades técnicas da época) e tem vida própria. Os clichês, verdade seja dita, dão ao filme a cara de Frankenstein, contudo, é por causa do mito do herói que as coisas são assim. O mito do suposto homem comum que se descobre especial e que, auxiliado por um sábio, soma algo a si, reúne comandados, enfrenta dificuldades e regressa vitorioso, cheio de glórias. E tudo isso em um mundo que não é a Terra…
“Um mundo a anos-luz da sua imaginação…“
Estamos num tempo e espaço indeterminados, no mundo de Krull: um lindo planeta habitado por humanóides cuja sociedade vive numa escala evolutiva similar à Idade Média da Terra. Castelos, reis e cavaleiros preenchem as paisagens verdejantes. O cotidiano de Krull é abalado quando a Fortaleza Negra, enorme nave espacial semelhante a uma montanha, pousa. A tal fortaleza é, na verdade, o domínio da Besta, um conquistador poderosíssimo, e do respectivo exército: os Slayers. A Besta – as semelhanças para com Sauron, de Tolkien, são inevitáveis – domina planetas e escraviza as formas de vida nativas. O exército dos invasores, diferentemente do povo local, é tecnologicamente superior – tem armas de raio laser, escala superfícies facilmente e se locomove bem na água. Os dois reis mais importantes do planeta resolvem, então, juntar forças a fim de enfrentar o inimigo. Para tanto, decidem unir em matrimônio os filhos: o príncipe Colwyn (interpretado por Ken Marshal) e a princesa Lyssa (a bela Lysette Anthony). Todavia, na noite da cerimônia, a qual mais se parece com um rito druida, o exército de Slayers chega ao castelo, mata ambos os reis e todos os soldados, fere Colwyn e rapta a bela Lyssa. De fato, a Besta deseja, além de conquistar o mundo, desposar a noiva de nosso herói e torná-la a rainha de Krull.
Na manhã seguinte, Colwyn desperta ao lado de Ynyr, o “velho” (interpretado por Freddie Jones num papel que poderia ter sido melhor explorado), a cuidar dos ferimentos do jovem. Ele chora pela morte do pai e pelo rapto da prometida, e está disposto a largar tudo, a entregar o reino, tamanho o desespero. Ynyr insiste com o rapazote que se tornou rei – muito a contragosto – e afirma que o mundo de Krull precisa ser salvo da Besta. Colwyn toma ciência da única arma capaz de deter o inimigo, o mítico Gládio (espécie de Shuriken gigante e dotado de 5 lâminas), a qual somente pode ser empunhada pelo “escolhido”. O artefato, infelizmente, está num local de difícil acesso: numa caverna, em um alto pico, e submersa em lava. Segundo a predição de Ynyr, se Colwyn for mesmo o escolhido, irá até lá e voltará com o Gládio. Se não, nem sequer retornará. A partir desse ponto o mito do herói começa a tomar forma…
A trupe
A ciranda de personagens é, aos poucos, apresentada: Ergo, o mago atrapalhado com coração puro e alma de criança (magistralmente interpretado pelo inglês David Battley), Rell (Bernard Bresslaw, maquiado), o misterioso e honrado ciclope capaz de prever a data da própria morte, Torquil (Alun Armstrong) e seu bando de ladrões e de saqueadores os quais, na verdade, têm boa índole e são corajosos (Liam Neeson, em início de carreira, faz parte!), entre outras criaturas ímpares que apóiam o herói na perigosa jornada. Uma série de aventuras e alguns sobes-e-desces direcionam Colwyn à Fortaleza Negra, bem como ao conflito final contra a Besta.
O charme de Krull
A fotografia de Krull é ótima e realmente digna das comparações para com a obra de Tolkien. Longas tomadas de Colwyn a escalar montanhas e a cavalgar por verdes planícies são levadas ao extremo, excelentemente exploradas. Tem-se a impressão de que, realmente, as locações – na Grã-Bretanha e na Itália – foram escolhidas com muito esmero. Cada paisagem foi meticulosamente estudada, catalogada e utilizada no momento oportuno. Curiosidade: embora os cenários criados em estúdio tenham sido bem produzidos, percebem-se com facilidade as transições entre as tomadas externas e as internas, especialmente se o filme for visto em Blu-ray ou via streaming. É uma pena, portanto, que as cenas rodadas em estúdio tenham ficado um tanto quanto artificiais.
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A trilha sonora, composta por James Horner (de Jornada nas Estrelas II e III, Willow e Titanic), é um espetáculo. Se Krull goza de certo charme e da posição de cult, também é devido ao trabalho do compositor. Horner explorou temas medievais e, para tanto, valeu-se do uso exacerbado de cordas e de metais bem acentuados. Há, por outro lado, trechos à la Guerra nas Estrelas, pois, afinal, trata-se de uma produção de ficção científica e fantasia. É uma pena, mas o CD (duplo) da trilha foi lançado apenas nos EUA, em versão limitada e exclusiva.
Os efeitos especiais (práticos, nada de CGI), embora hoje defasados faz 40 anos, foram bem realizados e não fazem tão feio a quem esteja acostumado aos padrões atuais. O destaque vai para uma das sequências finais em que a trupe cavalga as Éguas de Fogo, capazes de “perfazer mil léguas num dia”. É emocionante vê-los cavalgar sobre o ar e constatar as chamas “brotarem” das patas das tais éguas. Os efeitos produzidos para o Gládio, é óbvio, também são bons. Krull é o exemplo de filme em que os efeitos servem ao enredo e não o inverso.
Capa e espada espacial?
Alguns críticos entendem que Krull é um filme estranho, pois nele se misturam aventura espacial e aventura tradicional. É mesmo esquisito, até surreal, ver cavaleiros a brandir espadas em meio a raios laser. Porém, uma vez que a pessoa se acostuma com o clima diferente, ela passa mesmo a gostar da ideia que, guardadas as proporções, foi inovadora à época – claro, o filme foi na onda de Star Wars, isso não pode ser negado. O diretor Peter Yates, também britânico, imprimiu boas doses de aventura, de entretenimento, de humor, de magia e de sentimento. Assistir ao Krull é uma experiência emocionante. Deixe-se levar pelo ritmo do enredo e pelos “capítulos” da história, que são apresentados paulatinamente. Acompanhe alguns dos personagens carismáticos, principalmente “Ergo, o Magnífico”, e “Rell, o Ciclope”, por bandas que bem poderiam representar a Terra-média. Lute contra os Slayers, cavalgue com os heróis e sinta o vento a bater em seu rosto. Detenha o poder do Gládio em suas mãos.
Participe dessa aventura sublime e ingênua, e sinta novamente aquele gostinho de Sessão da Tarde de quando éramos crianças nos anos oitenta! Difícil mesmo será voltar à Terra após tanta aventura…
Curiosidades sobre Krull
• Foram produzidos jogos eletrônicos baseados em Krull. Há um jogo para Arcade (Fliperama) e outro para o Atari 2600, ambos lançados em 1983.
• Ken Marshal, o ator principal, nunca chegou a ver sua carreira decolar, tendo apenas participado de telefilmes e de poucos longas após o sucesso de Krull.
• Existe uma arma fictícia cuja ideia foi retirada do Gládio e que foi usada na série “Xena, A Princesa Guerreira”.
• Robbie Coltrane, intérprete de um dos “ladrões” que auxiliam Colwyn, atuou como o gigante Hagrid nos filmes da série Harry Potter.
• Lysette Anthony, a princesa Lyssa, estrelou diversos clipes do cantor Bryan Adams, tais como “Run to You” e “Heaven”.
• Em 2018, a Mill Creek Entertainment lançou, nos EUA, uma edição em Blu-ray muito caprichada de Krull, com direito a uma embalagem “com sabor” de fita VHS e extras. A empresa já havia lançado a versão regular em 2014.
Formado em Comunicação Social com Especialização em Biblioteconomia, Marcus Garrett é pesquisador da história da chegada dos jogos eletrônicos ao Brasil. Publica livros, revistas e documentários acerca do tema, bem como coedita a Histórias Extraordinárias, publicação dedicada à ficção científica, ao horror cósmico e ao sobrenatural. É contista amador, tendo escrito alguns contos para a citada revista.